• Falilatou Estelle Sarouna em depoimento a Thiago Baltazar (@thiagobaltazar)
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Falilatou Estelle Sarouna (Foto: Arquivo pessoal)

Falilatou Estelle Sarouna (Foto: Arquivo pessoal)

Sempre trabalhei com roupa no Togo, onde nasci. Lembro que a primeira vez em que conquistei meu dinheiro foi aos 12 anos, quando realizei uma venda. Com essa idade era para eu estar estudando, mas, infelizmente, não tive a chance de frequentar a escola por não ter nenhum rico na família. Foi assim que decidi trabalhar. Não queria mais passar fome.

Em 2014, desembarquei no Brasil buscando melhores condições de vida para sustentar meu filho, hoje com 12 anos. Não queria que também passasse necessidade. Eu me despedi dele na África e vim para São Paulo, onde meu marido vivia na condição de refugiado, status que o governo me concedeu.

Nós dois moramos na Casa do Migrante, na Liberdade. Lá, aprendi o necessário para sobreviver e trabalhar. Depois de um tempo, aluguei uma casa com meu marido, mas nossa relação não deu certo. Nos separamos e o padre Bernardino Mossi, que acompanhou toda minha situação, me levou de volta à Casa do Migrante.

Nesses seis anos morando aqui, passei por muitas situações difíceis. Trabalhei debaixo de sol e chuva tentando ganhar meu dinheiro como vendedora ambulante no Brás. Eu comprava fiado minhas mercadorias por não ter como pagar antecipado. Mas, apesar de tudo, nunca imaginei que o pior momento de minha vida no Brasil ainda estava por vir.

Em uma manhã de dezembro do ano passado, por volta das 10h30, encontrei um conhecido em uma rua perto da minha casa enquanto voltava das compras. Eu havia acordado de madrugada para pegar produtos para revender no Brás.

“A polícia está te procurando”, ele me disse. No começo, pensei que estava fazendo uma piada, por isso não dei muita atenção. Mas ele insistiu. Contou que policiais o haviam abordado perguntando se me conheciam. Deram meu nome e mostraram fotos minhas. Como não devo nada a ninguém, falei que meu amigo poderia até ter dado meu endereço.

Até aquele momento, estava despreocupada, porque não havia feito nada de errado. Passei na padaria e segui para minha casa. Quando cheguei, vi a porta arrombada. Levei um susto. A proprietária do imóvel e uma vizinha tentaram ligar para avisar que a polícia também havia as abordado, mas meu celular estava no modo silencioso dentro da minha bolsa.

Falilatou Estelle Sarouna (Foto: Arquivo pessoal)

Falilatou Estelle Sarouna (Foto: Arquivo pessoal)

Eu realmente não entendia porque a polícia estava à minha procura. Os agentes reviraram toda a minha casa e deixaram uma bagunça, mas não levaram o pouco dinheiro que eu tinha guardado. Foi então que decidi ligar para o meu irmão [de consideração] padre Bernardino, da Casa do Migrante, em busca de orientação. Ele disse para ir à delegacia. E eu fui. Nunca cometi nenhum crime no meu país e não iria começar agora.

Quando cheguei, entreguei meus documentos a um dos agentes do departamento de polícia e fiquei aguardando alguém explicar o que estava acontecendo. Em determinado momento, me chamaram para participar de uma videochamada com outro homem.

“Você sabe por que está presa?”, ele me perguntou. Eu, em choque, respondi que não estava presa, apenas havia ido à delegacia para entender qual era o problema porque o delegado não havia explicado nada.

“Você está detida por estelionato e lavagem de dinheiro”, afirmou ele. Na ocasião, eu não fazia ideia do que era lavagem de dinheiro. Para mim, este era o nome que se dava a quem falsifica cédulas. Ele prosseguiu e perguntou quantos carros, casas e contas bancárias eu tinha.

Tudo aquilo para mim era absurdo, porque todas as coisas que eu possuía na minha casa eram fruto de doação.

Conforme a conversa seguiu, me explicaram finalmente o que estava acontecendo. Havia uma investigação criminal contra pessoas suspeitas de participar de um esquema de fraude e golpes pela internet. A maior parte dos suspeitos era de migrantes, e as contas bancárias ligadas aos crimes estavam em meu nome.

A verdade é que tenho somente uma conta legítima aberta. Além disso, sou analfabeta, portanto, não poderia ter assinado em letra cursiva os documentos necessários para a abertura das outras contas. Bastava comparar a minha assinatura com a letra usada pelos suspeitos.

Mas nada disso serviu para me livrar de ser presa injustamente. Foi uma sensação horrível quando fui levada à penitenciária feminina do Carandiru. Não gosto de lembrar. Por seis meses vivi naquele lugar sem nunca ter cometido qualquer infração. A única visita que tive foi on-line, do meu irmão [de consideração] Prosper, que vive no Brasil.

Felizmente, havia pessoas que estavam dispostas a fazer justiça. Meu caso foi discutido na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo no dia 31 de maio. A reunião extraordinária foi presidida pelo 
vereador Eduardo Suplicy (PT) e contou com a presença do movimento negro, representantes de movimentos de defesa dos direitos humanos, do Conselho Municipal de Imigrantes e da Ouvidoria da Polícia do Estado e Poder Executivo.

Eles pediram pela minha liberdade e falaram sobre os maus-tratos cometidos contra pessoas estrangeiras, em especial, os não brancos. Debateram, também, sobre o movimento de criminalização da migração no Brasil.

Cerca de duas semanas depois, no dia 16 de junho, finalmente recuperei minha liberdade. O juiz titular da 2ª Vara Criminal de Martinópolis, Alessandro Correa Leite, decidiu pela revogação da minha prisão preventiva, expedindo um alvará de soltura.

Uma das primeiras coisas que fiz quando saí foi ligar para o meu filho. Passei muito tempo sem falar com ele e sem enviar dinheiro para que pudesse estudar. Por causa disso, infelizmente, ele foi forçado a deixar a escola.

Mais do que nunca, quero ele aqui comigo. Peço doações a quem puder que colabore  com os custos para trazê-lo ao Brasil. Eu, depois de tudo o que passei, ainda não tive condições emocionais e psicológicas de voltar a trabalhar.

Não tenho mais a minha casa. Estou morando com minha irmã. Ambas estamos nos recuperando de todo o trauma que sofremos. Mas quero recomeçar minha vida aqui, no Brasil, e, quem sabe, um dia viajar para a África com meu filho para rever minha mãe mais uma vez.